“com a palavra…” | Acervo de Tuca Nissel
Certo dia, ao organizar particular e corriqueiramente parte de sua coleção, Tuca Nissel percebeu que havia um elemento a ligar várias obras: a palavra. Ora, o primeiro questionamento que se faz num momento desses é: o que faz de uma coleção, uma coleção? Certamente, há um componente arbitrário nas coleções, não no sentido negativo que o termo possa ter, o de dispersão autoritária, e sim quando se pensa num mote, numa organização, num alinhamento, quando se pensa naquilo que justamente dá a essa coleção certa coerência.
Tuca também observou que grande parte das obras havia sido adquirida pela permanência e contato com o Clube da Gravura do MAM. E esse aspecto — o do uso da palavra — não apenas ordenava uma coleção dentro da coleção (alegria para qualquer coleciona-dor e galerista) mas uma lógica que dava à coletiva aqui presente mais e mais peso, sabor, interesse, beleza, fundamentação. De todo modo, observar de perto tantos trabalhos, colocá-los próximos, traz interessante investigação sobre certo fazer artístico atual.
A palavra grafada não é nova nos processos ditos artísticos, seja lá o conceito de “arte” que se empregue, desde que se convencionou pensar a palavra em algo a ser representado, seja lá a que tipo de código de escrita se possa referir. Então, a palavra está na pintura egípcia ou nas grandes esculturas ao ar livre assírias e persas, mas também na pintura medieval ou renascentista (da primeira fase principalmente), quando a palavra de um santo ou arcanjo surge ao ar a partir da boca, onde se acreditou que se formava. Então, ali, em grego ou latim, está a palavra grafada. Muito posteriormente, a palavra re-toma certo lugar na arte, não mais com a acepção religiosa ou grandiosa — e sim com seus sentidos cotidianos, até porque as discussões sobre a palavra ganharam novos contornos justamente há cem anos (comemorou-se recentemente um século dos estudos saussurianos, o que dá a essa coleção um novo sabor).
Em particular nessa coleção/coletiva, vê-se que a palavra como código aparece nas mais variadas formas e maneiras: ora é trabalhada na cerâmica, ora é inserida na pedra, ora é impressa em técnicas diversas, mas sempre a palavra. Ocorre que nem sempre a palavra grafada remete a um significado fixo. Se não é assim sequer nas gramáticas tradicionais e nos dicionários, quem dirá no território da Arte. A discussão sobre a palavra (em sua realidade mesma da língua, ou seja, no seu discurso e em sua estrutura) é quase tão antiga quanto a filosofia que conhecemos e damos espaço para surgir e frutificar, mas foi somente no começo do século XX que começaram os estudos para se separar o que era um código do que era um sentido, um significado, uma presença, um desejo. Evidente-mente, o sujeito sempre esteve frente à palavra (desde o surgimento das línguas em tempos irrecuperáveis), mas ao longo do século XX as questões sobre código, representação, língua, linguagem, sentido e discurso (algo realmente recente, em verdade) foram ganhando corpo dentro e fora das academias. A Arte, como um sistema discursivo por si mesmo e como uma prática, não poderia ficar alheia a essa complexa questão.
A palavra pode ser vista, visualizada, talvez entendida dentro de um código pré-estabelecido, mas a palavra é também uma miragem, um bloco de significado dentro de um contexto, sem o qual ela não existiria. Hoje, pensa-se uma língua como um conjunto mais ou menos estável de estruturas, as quais têm um sentido próprio, variável e vivo no interior de um quadro sociocultural e histórico. Não é pouco. Isso resume séculos de investigação sobre a palavra — e não é algo pacificado.
De todo modo, nesse coletivo, vejamos algumas situações que surgem, para além das discussões linguísticas ou justamente permitindo que as questões linguísticas, por sua vez, as atravessem. Digamos que haverá discursos sobrepostos/superpostos/justapostos e contatos em franco diálogo, que sejam de oposição.
Projeto Leve, 2012
Mármore grafitado e numerado – 18 x 31 x 1,5 cm – nº 70
Isaque Pinheiro, por exemplo, troça com a ambiguidade da representação e do sentido, paradoxo comum nas questões linguísticas: ao usar a palavra “leve” grafada numa pedra, ele remete tanto ao sentido de leveza quanto ao imperativo verbal. Desse modo, uma mesma palavra é a um só tempo um substantivo e um verbo, o que talvez fosse de impossível coexistência num sistema linguístico, mas que é concreta, real, palpável, no contexto em que o artista imaginou esse trabalho. Existe sarcasmo aí, principalmente num lugar (social e físico) em que o trabalho artístico custa, não é para ser “levado” e por isso seria “pesado” e não “leve”, notadamente um bloco de pedra ou caliça. A ideia em si de transformar um resto num objeto a ser “levado” é de extrema ironia.
Vale o escrito, 2005
30 x 22 cm – 81/112
José Damasceno flerta com o documento, com a força do documento, com a força documental. Um documento é uma presença e um desejo da verdade — e o que está escrito e grafado nele vale como um acordo, uma venda, um testamento, uma negociação, etc. Ironicamente, sabe-se que a palavra pode ser compreendida de diversos modos, e isso ocorre principalmente quando certa ética é deixada de lado, em prol de interesses escusos. Ao firmar sobre uma folha de papel justamente a frase “vale o escrito”, ao modo como os cartórios o fazem, Damasceno coloca em questão essa (suposta) verdade, seus limites e seus contornos. Na série de trabalhos de que faz parte esse papel-objeto, há também carimbos, com a mesma frase ou com a palavra “crítica”, vocábulo que tem um peso específico no território da Arte. O documento está emoldurado; então, seu status é especial, não se tratando de um papel avulso comum. Ironicamente, nada mais há na superfície branca. Há uma pergunta que envolve esse trabalho: vale mesmo o que se escreve?
Liberdade e amizade, 1999
Serigrafia sobre tecido – 74 x 51 cm
Emmanuel Nassar, por sua vez, dialoga abertamente com a arte da vexicologia (Fla-genkunde, vexicollogy), transformando uma bandeira em tecido, ao modo de uma bandeira de nação, grupo, partido, em algo novo, no qual surge a expressão ou lema “Liberdade e amizade”. Nassar utiliza cores fortes nesse trabalho, como ocorre com a maioria das bandeiras, para que possam ser vistas de longe e logo “entendidas”. A semiótica das bandeiras e flâmulas (dada pela cor, pelos símbolos e pela palavra) ganha aqui um novo território de sentidos e hipóteses. Posta dentro de uma moldura, passa a ser um objeto de desejo e particular, e não aquele feito e imaginado para representar grandes grupos. Uma faixa diagonal em uma bandeira significa a união de opostos/extremos e é comum em países e situações nas quais é necessário mostrar tal união é possível. Portanto, é como se o lema apontasse uma dissonância entre “liberdade” e “amizade”, pondo em xeque certa coexistência. Involuntariamente, ou não, é esse o jogo de sentidos numa faixa que liga extremos de um poliedro qualquer.
LUCRO, 2002
Cerâmica esmaltada – 53 x 15 x 4 cm
No trabalho em cerâmica “Lucro”, Glauco Menta molda, a partir da técnica do rolo, letras que formam justamente a palavra “lucro”, trabalho que fez parte de uma coleção inteira em que imperam palavras como “investimento”, “ projeção”, etc., em preto e branco, em que ele questiona os rumos da arte e do mercado. As palavras são soltas, no caso das cerâmicas, podendo ser reagrupadas. A palavra “arte” permitiria a grafia “tera”, por exemplo, que remete a uma potência de dez (dez elevado a doze, ou seja, algo realmente grandioso), ou ao termo em grego que diz respeito à monstruosidade, dentro do contexto em que o artista questiona grandezas e imperfeições do mercado de arte. A técnica do rolo não é geralmente utilizada com esse fim, então aqui temos o deslocamento da técnica e do(s) sentido(s)/significado(s). As letras foram esmaltadas e queimadas em preto. Embora a tinta seja brilhante, uma palavra “lucro” vestida de negro remete a luto e a algo negativo, semanticamente e simbolicamente. Esse trabalho é o único na carreira do artista em que a cor (o uso vasto de cores) não tem lugar.
Ser Espaço Tempo, 2016
Litografia com serigrafia – 76 x 53 cm – 12/13
Cristina Ataíde imprime com serigrafia palavras sobre outra técnica tradicional, a litogravura. Tal sobreposição não é incomum no trabalho da artista portuguesa, interessada em cartografias pessoais tendo o papel como um dos materiais de sua pesquisa formal. O interessante nesse trabalho, afora a coexistência de duas técnicas da impressão (uma tradicional e cada vez mais rara e outra cada vez mais presente e comum) é o traço de leveza que ela “imprime” em superfícies e imagens que seriam pesadas, seja a montanha como elemento de representação do distante, do inalcançável, mas do presente, do que não se pode ignorar, seja a própria pedra, que permite justamente certa técnica de impressão. A palavra grafada não é incomum na pesquisa da artista, mas aqui ela ganha contornos novos. A pedra (em português tal palavra já foi usada para se referir ao lugar onde se ensina, onde se grafa o ensinamento) também está presente em demais trabalhos da artista. Aqui, há ecos longínquos da pedra, como técnica.
As Três Graças, 2009/2010
Mármore Carrara, 9 x 6 x 3 cm – 1/3 + P.A.
Em “As três graças” (tema comum na grande Arte, emprestado ao imaginário grego), Hugo Mendes lavra em pedra a palavra “Lux”. As referências são muitas na investigação plástica de Mendes, grande inquiridor da forma e do material. Claramente, há referência ao sabonete vulgar, com nome pomposo. O formato das peças e a cor do mármore remetem também a esse objeto de consumo, embora o carrara seja um tipo de mármore caro, usado da estatuária clássica, fruto de desejo de grandes escultores, o que se contrapõe ao sabonete barato. O número de peças, três, não apenas faz alusão ao título do trabalho mas às Graças gregas, popularmente ditas como deusas da felicidade, algo prometido pelo uso do sabonete, que traria asseio e frescor. Também remete a “gracejo”. Mas o jogo verbal não se inscreve apenas nesse espaço, porque a palavra “lux” também é “luz” e por si só já carrega outra rede de significados. De todo modo, essas pequenas esculturas lidam com sentidos também sobrepostos.
O duplo, 2015 – Livro de artista
Madeira (imbuia e marfim), papel e gravação a laser – 21 x 14 x 3 cm – 3/20
Já em “O duplo” o material muda, aqui havendo a madeira no lugar no mármore, mas o diálogo é com outra forma de representação da palavra, a literatura escrita (e não a oral). É de se imaginar que o trabalho dialogue abertamente com uma obra literária (um romance do jovem Dostoiévski) em que há uma usurpação: um sujeito toma o lugar do outro. Aqui, não apenas a arte investe contra/a favor do terreno literário, como há “usurpação” de forma por outra, de um discurso pelo outro, de uma representação pela outra, de um objeto pelo outro. Esses trabalhos “duplos” podem ser manuseados, mas, diferentemente de um livro, não podem ser abertos, não há uma história ali a ser vista, lida, mas o objeto pode ser “lido” a seu modo e a seu tempo. A duplicidade também se dá ao se manusear o objeto, pois há diferentes “lados” neles.
Quem Mim-guém, 1998
Acrílica s/ papel Fabriano – 103 x 73 cm
Arnaldo Antunes, poeta, músico, compositor e artista plástico tem uma pesquisa voltada para a palavra (oral e escrita) em suas mais variadas vertentes, em franco diálogo com uma das mais importantes correntes da investigação das palavras nas artes gráficas, na escrita e nas artes plásticas, o concretismo, embora haja ecos, em seu trabalho, da ir-reverência tropicalista. Em seus trabalhos, a palavra surge no seu esplendor de significado e de significante, aqui, no caso, em pintura. Na tela, a palavra do músico ganha outra forma, mais “concreta”, fixa, o que não ocorre em suas famosas composições musicais (ou que ocorrem lá diferentemente). De toda maneira, a mesma ambiguidade sonora que o poeta musical tem em suas composições aparece em seus trabalhos plásticos, nos quais pesquisa e investiga sons e sentidos.
Cidade Cenográfica, Centro de Curitiba, vista Leste, 2006
Fotografia. 3 cópias 30 x 10,5 cm. Papel fine art, papel fotográfico, e impressão offset.
Gilson Camargo lida com diferentes modos de representação: num mundo “real” e palpável, ele encontra uma frase grafada na rua e a fotografa. A imagem então retirada de seu espaço inicial e crítico migra para uma região em que o sentido dela ao mesmo tempo que se dissipa se amalgama a outros. A escolha pela sobreposição de fotos não vem à toa, porque justamente lida com planos distintos, de representação, memória, tempo, discurso político manifestado na rua. Mencionar que a cidade de Curitiba é cenográfica é por si só uma ironia, quando habitam nela diferentes formas de se a ver, de se a avaliar, de se a viver, falsas e verdadeiras simultaneamente. Ao fazer as impressões em papéis distintos, o artista também dialoga certa questão em particular do tempo: são impressões diversas em tempos também diversos, exatamente como a cidade é, em paulatina mudança. Não há nada fixo na cidade, algo que a fotografia já questiona há tanto tempo ao tentar congelar ângulos e modos de ver.
Série Proposições Matemáticas, 2001
Bordado s/ capacho de polipropileno – 50 x 42 cm
Marta Neves parte de duas situações cotidianas, em dois planos discursivos: o primeiro é o do objeto cotidiano, como é o caso do capacho e do pano-de-prato; o segundo é o discurso ouvido ou captado em algum lugar, devidamente anotado. Cruzando ambos, tem-se uma situação nova em que um se sobrepõe ao outro, sem no entanto haver primazia de um pelo outro. Há singeleza na escolha de ambos, pois o capacho e o pano-de-prato são objetos do cotidiano, simples, quase inobserváveis. Os discursos têm um que de naïfe: ao passo de que carregam certa absurdidade, fazem parte de um conjunto de dizeres do cotidiano que carregam sua força (política, do desejo, de uma visão de mundo). A verificação dessas singelezas com quê de absurdo encontra-se num plano de certa gravidade formal: o título da série é Proposições Matemáticas. As proposições matemáticas transportam um quê de verdade, mesmo que haja dúvida em algumas delas, uma ou outra não solucionável no interior da matemática. Mas Marta Neves, ao colocar no mesmo plano uma proposição matemática (das áreas justamente chamadas “exatas”) como um discurso do cotidiano (que por sua natureza é ambíguo e opaco), põe em xeque nosso contato com o que nos cerca, seja o palpável (o capacho), seja o inatingível, o discurso.
Série “Loading on your mind”, 2006-11
Serigrafia sobre papel – 67 x 48 cm – 9/80
Em “Loading on your mind”, Washington Silvera faz um versão em menor escala de um trabalho em paralelo, para a mesma séria. Aqui, temos a serigrafia e lá, pintura. A referência inicial é Andy Warhol, que já questionava há meio século o consumo, o mercado capitalista, etc. Porém, em Silvera, o contexto é outro, o do universo tecnológico e pós-moderno da cibercultura. É como se o trabalho fosse inacabado, pois precisa ser “baixado” de uma nuvem, de um universo que não se pode ver, mas que pode ser acessado, na “mente” ou fisicamente. Warhol já havia lidado (ele e tantos outros da pop art e de movimentos paralelos) com a palavra escrita, retirada, emprestada, surrupiada de outros terrenos. Silvera traz um novo sentido para essa busca, num universo em que se discute a dissincronia do tempo e ainda a parestesia: vivemos inquietos diante à melancolia e confusão modernas, sem conseguir acessá-las por completo, entendê-las. É como se algo estivesse ocorrendo ou por ocorrer. Há espera involuntária nessa representação do tempo porque ele é líquido e foge por entre os dedos.
Sem Título, série detour, 2004
Vidro espelhado – 75,4 x 68,5 cm – 40/80
Há algo de labiríntico e de puzzle na pesquisa de Valeska Soares. Em seus trabalhos, notadamente na série detour, de 2004, ela coloca a palavra por si só “desviada” de sua utilização básica, a comunicação, de forma que, caso o leitor queira ler, necessitará fazer desvios dentro de um labirinto da língua grafada e dos sentidos dela, caso detenha o mecanismo de leitura dela, a chave de seu código. Ao colocar as palavras desviadas de sua função e forma sobre um espelho, ela insere ainda o leitor em outro labirinto, como a obra e o leitor/espectador/fruidor estivessem num abismo (um mise en abyme). Aqui, o leitor se vê na obra, e a leitura se torna difusa, complexa, como realmente estivesse num labirinto e precisasse decidir se vai para lá ou para cá.
[vimeo 235623276 w=800 h=450]
Sem sua risada, 2017
Vídeo em looping – 1/5
Único vídeo da coletiva, o trabalho de Ricardo Machado lida com a imagem fixa e a imagem em movimento. Um automóvel passa em frente a uma placa e o sentido dela se altera a cada passagem, alterando-se, por sua vez, o sentido nato dela com um novo e outro significado, que se dá pela passagem, pelo apagamento. É quase um anagrama, que é comum na poesia (como o acróstico, por exemplo), em que certas letras, recompostas, formam novos sentidos. Como os sistemas de grafia (notadamente o latino) são com-postos por um número pequeno e finito de letras (não de sons, muito menos de senti-dos), é bastante comum que ocorram anagramas involuntários ou ainda ambiguidades e paradoxos. Aqui, o trabalho em vídeo, ao focalizar uma placa de trânsito, por si só já é um deslocamento e uma busca pelo significado móvel das coisas do mundo. Como as frases se repetem infinitamente, pode se pensar na questão do que é efêmero e do que é eterno.
Sem Título, Berlim, 2012
60 x 70 x 25 cm – tinta acrílica sobre mala
Georgien e Angriff auf Bagdad (série bodybuilders), 2003
54 x 78 cm – tinta acrílica sobre foto sobre PVC
Alex Flemming, numa famosa série, imprimiu mapas de zonas de conflito (atualmente existem duzentas no mundo) sobre corpos atléticos, cuja forma é considerada padrão no universo da beleza, da moda, da venda de produtos. Há um discurso político bastante forte nessa pesquisa (discurso que não é incomum no trabalho do artista brasileiro radicado na Alemanha) porque, do mesmo modo que há um mercado para a beleza, há um mercado para a guerra, e muito provavelmente, na grande rede de discursos capitalistas, ambos coexistam com certa tranquilidade. Vistos de cima, os mapas parecem neutros, talvez até belos, assim como os corpos representados, com forte apelo erótico, o que não ocorre nas zonas de conflito, em que a tranquilidade desses corpos e seu apelo erótico não podem se dar de modo seguro ou pacífico. Há nesses trabalhos uma dicotomia entre Eros e Tanatos, uma inquietação, o que não ocorre nos objetos (como a mala também presente na coletiva) em que imprime sobre peças do cotidiano letras esparsas, ou pequenas frases, deslocadas de seu território original.
Em conjunto, agrupadas umas frentes às outras, de diversas partes do Brasil e do exterior, esses trabalhos trazem algumas características comuns: o deslocamento do sentido, a sobreposição de discursos e de formas de grafia/escrita, a ironia, certo questionamento político frente ao mercado de consumo, a coexistência de formas tradicionais e contem-porâneas da representação artística, a inquietação que toma conta de vários artistas nessa busca, o diálogo possível com outros discursos, seja o literário ou o linguístico, uma preocupação contemporânea com a noção de tempo, etc. Como bem lembra Tuca, é curioso perceber também que muitos dos trabalhos, ao lançarem mão da sobreposição, dialogam abertamente com a escultura, embora planos, pois há neles os eixos presentes dos trabalhos com volume.
Em resumo, em pleno ano em que se comemoram cem anos de Saussure, a coletiva é um presente.
Benedito Costa Neto
No último dia da mostra, a galerista Tuca Nissel e o pesquisador Benedito Costa participaram de uma conversa sobre o tema da exposição relacionado às Artes Visuais, com alunos da disciplina de “Gerenciamento e Documentação”, das classes da professora Débora Santiago, da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP).
“É bem interessante esta situação da Tuca, que encontrou dentro da coleção dela um núcleo em que ela percebeu que havia uma coerência. Isso pode até ter sido construído de forma assim involuntária, mas, ao longo dos anos ela reuniu uma coleção em que a palavra apareceu de uma certa maneira. E procurar essa coerência no meio de uma coleção artística é muito interessante porque a gente pode encontrar aí algumas situações de discussão para quem é do ramo das artes plásticas.
Nós estamos vivendo uma situação dramática no Brasil agora, que é de uma censura muito grande em relação a certos trabalhos artísticos. Vocês viram, por exemplo, o que aconteceu lá no Rio Grande do Sul, quando simplesmente decidiram que uma exposição no Santander Cultural acabaria porque ela teria obras consideradas indecentes. Então, a gente está vivendo uma situação muito curiosa de discussão artística. Eu tenho escutado muito que no Brasil nunca se discutiu tanto arte e, eu discordo, eu acho que no Brasil nunca se falou tanto sobre arte. São coisas diferentes.
Pesquisas mostram que 92% da população não frequenta exposições, então, apenas 8% da população brasileira tem acesso a exposições de arte. Geralmente as pessoas não sabem o trabalho envolvido para se realizar uma exposição. As pessoas não tem ideia do que é um curador, do que um curador faz, o que exatamente um crítico faz, qual a postura que um crítico tem em relação ao trabalho artístico, e também sobre o próprio artista e o que ele quer mostrar com o trabalho dele. A gente ainda escuta aquela história, quando alguém vê uma pintura e diz: “ah, o meu sobrinho de 5 anos faz melhor”. Ou, “eu não entendo porque isso aqui está na parede de um museu”. Até porque grande parte das pessoas ainda tem uma noção sobre a arte de que ela é pictográfica, ou ela trabalha com imagens, ou ela descreve uma paisagem. Esses discursos são muito comuns e, embora já haja séculos de discussão sobre o que seria a arte ou a função da arte, ainda se vê esses traços na sociedade, as pessoas pensam assim e vão a museus e não gostam disso. Mas, uma das funções da arte é essa mesmo. É incomodar as pessoas e fazer com que elas entrem nos museus, numa galeria ou numa sala de exposições qualquer e levem um susto. Mesmo para quem está habituado à discussão no ramo das artes isso acontece.
A minha provocação ocorre no seguinte sentido: quem é estudante de artes plásticas, quem está inserido nesse meio, quem está tentando um caminho, sejam professores, pesquisadores, alunos, enfim, deve procurar descobrir qual é o nosso lugar também. O que a gente quer fazer no ramo das artes? Nós vamos ser curadores? Nós vamos ser críticos? Vamos ser produtores ou professores de arte? E visitar uma exposição sempre leva a gente a pensar em nossa postura frente a isso. Eu quero dizer que, é claro, nós não somos obrigados a gostar de todos os trabalhos, nós não somos obrigados a olhar os trabalhos e ter um entendimento fechado sobre aquilo, até porque eu não acredito em verdades fechadas. Minha área de pesquisa não considera isso. Nós não entendemos que a arte seja uma verdade absoluta sobre os fatos. Nós entendemos que existem possibilidades.
Sobre esta exposição eu gostaria de chamar a atenção para dois pontos: o primeiro é de como a palavra aparece muito na arte de uma forma irônica, e essa ironia não é uma ironia por si só, não é apenas uma gozação, não é necessariamente uma piada. A ironia não é uma invenção das artes plásticas, ela vem de há muito tempo. Também não é nenhuma novidade no ocidente o uso da palavra como objeto gráfico. O ovo grego, os haikais japoneses, a forma da escrita chinesa, várias escritas egípcias ao longo da história… e a ironia nem sempre tem a intenção de ser jocosa ou de fazer trocadilhos, pois, muitas vezes ela traz uma intenção política, como no trabalho do Flemming que vocês podem ver nesta mostra, onde ele coloca mapas e textos em cima de corpos que a mídia considera perfeitos para os padrões. Existe uma outra série em que ele recorta tapetes persas em formato de aviões. Então, lidando com a questão de um ataque feito por aviões, ele recorta tapetes persas daquele povo a que muitos reputam terem realizado o ataque. A discussão dele sobre a palavra, sobre o objeto, traz sempre uma discussão política muito profunda. Sob esta visão, a brincadeira com a palavra nunca é vazia, tem sempre uma discussão política, sobre os poderes desse grande território da arte, de compra, de venda, de valor, de documentação, etc…
O segundo ponto que eu destaco é a transposição do discurso de um lugar para outro. Pois o discurso ele nasce, vive e se propaga. Ele é feito dentro de um determinado território. Por exemplo, nós estamos tendo esse diálogo aqui, mas, quando eu pego esse diálogo e coloco ele em um outro contexto, a rede de sentidos deixa de ser a mesma. Então, o clichê pode ser o de que o discurso é como um lago: eu enxergo a superfície dele, mas, eu não sei o que há lá no fundo. O lago pode ser bonito, eu posso navegar por ele, mas, o fundo pode ser violento. E os discursos são dessa maneira. Nesse trabalho do Nassar, por exemplo, nós temos um lema que é típico de bandeiras, ele ironiza, ele faz um diálogo com a arte de fazer bandeiras, e quando ele traz esse discurso pra cá (para a galeria) ele não é mais o mesmo. Então, nós temos uma questão de territorialidade. E o que seria essa desterritorialização do discurso? É quando eu pego um discurso, uma estrutura discursiva e levo essa estrutura para outro terreno. A arte faz isso o tempo todo, ela faz isso com imagens, faz isso com objetos.
Nesta coleção vocês vão encontrar o objeto deslocado. Lá em cima a gente tem um “capacho” no qual a artista escreveu um texto, escreveu uma fala, escreveu um discurso, e aí alterou o seu sentido e o transformou em algo diferente do que ele tinha em seu contexto original. Aqui a gente tem um mármore carrara, um material caro que está ironizado como um sabonete barato, que é o Lux, não é assim um perfume da Dior. E aqui o trabalho se chama As Três Graças, então, o artista trabalha com diferentes níveis do discurso: a questão da propaganda, a questão do objeto sabonete, a questão do material mármore, que é utilizado na estatuária mais fenomenal dos grandes escultores renascentistas, e aqui você tem a transposição do discurso, da rede de significados do discurso do objeto que ele vem a representar. Essa rede de significados, chamada de semiótica, é um dos pontos mais importantes das artes plásticas.
Então, me parece interessante situar o que eu quero fazer, o que eu quero estudar. Eu quero fazer curadoria? Eu quero fazer uma coleção? Eu quero produzir arte? Eu quero fazer uma pesquisa sobre isso? E colocar isso tudo dentro de uma rede maior que é a história da arte. Tem um monte de coisas para falar dessa exposição, eu separei apenas estes dois pontos para a gente iniciar a conversa. Convido todos vocês a ver a exposição, a ler o texto, e eu estou a disposição para conversar.”
Ao longo desses 22 anos de galeria sempre tive a preocupação de montar um acervo que servisse futuramente quase como uma memória desses anos de trabalho. Então, eu pensei na possibilidade de montar uma exposição com obras que estavam guardadas, pois, cada uma delas tem uma história, esteve em uma determinada exposição na galeria ou faz parte de um processo que cada um desses artistas desenvolveu durante uma época.
Não é a primeira exposição que eu monto com obras do meu acervo; vocês vão receber um catálogo de uma, chamada Outras Formas, que foi realizada no SESI em 2011, em que a Simone Landal exerceu a curadoria.
Nesta aqui, a ideia foi refletir e exercitar um olhar sobre obras que, de alguma maneira, tivessem alguma coisa em comum e, olhando várias delas dentro dessa coleção eu percebi que muitas tinham a palavra presente no seu processo, na sua finalização.
Tuca Nissel