Exposição individual de André Rigatti
Em sua segunda exposição individual na Galeria Ybakatu, André Rigatti exibe 33 pinturas recentes, resultado de sua investigação no doutoramento em Artes Plásticas na Universidade do Porto, apresentadas como uma instalação que ocupa todas as paredes da galeria.
De 22 de novembro a 06 de dezembro de 2019.
“já cheguei no fim recomecei e aqui estou eu…”
Conversa realizada através de e-mails, em outubro e novembro de 2019, entre Simone Landal e André Rigatti.
S.L. Bom dia André!
Tudo bem?
Para re-começar nossas conversas… Os trabalhos que serão expostos na Ybakatu no final de novembro dialogam bastante com a série de gravuras que vc produziu entre 2008 e 2010. Como é revisitar esta série?
A.R. Ola Simone tudo bem e você?
Sim, os trabalhos que serão apresentados na Ybakatu partem de duas séries de pinturas que desenvolvi nos últimos meses durante as investigações do doutoramento. São pensamentos que buscam hibridizar pintura e gravura. O início desta reflexão se deu aproximadamente em 2012, quando estava a buscar formas de problematização dos estratos da pintura. E neste momento, em que pensava nestas questões, as matrizes de serigrafia que utilizei na fase final de produção das gravuras de 2010, (que foram apresentadas no Museu Victor Meirelles) começaram a me intrigar. E desta suposta provocação iniciei uma série de experiências de impressão com tinta óleo e acrílica sobre pinturas em processo, entretanto, diferenças próprias da pintura me fizeram descobrir um método distinto daquele das gravuras de 2010.
S.L. A palavra estratos, que vc citou, me intrigou… é familiar, mas pensei na amplitude de seu significado…Do dicionário:
“se refere a uma faixa, uma camada: camada da pele, camada de um terreno sedimentar, camada social, camada populacional, … Significa também um conjunto de nuvens baixas, em formato de camadas horizontais uniformes e acinzentadas.”
Parece que essas ideias fazem muito sentido em relação ao seu trabalho – camadas de tinta, de técnicas, de significados, de tempo. Vc cita a descoberta de um método, diferente do usado na produção de 2010… pode falar um pouco mais sobre ele?
A.R. Quando penso em estratos na pintura, e me utilizo desta palavra, estou realmente interessado no processo de acumulação de camadas. E pensar esta acumulação ou sobreposição significa criar tanto um terreno, quanto um corpo. Pois, pintar, significa para mim atualmente, conceber uma imagem que tenciona tanto sua possibilidade de ser um possível espaço, quanto um possível corpo. São imagens que mostram seu estado em crise. Pois, inicialmente surgem como espaços transformados em lugares e, a posteriori, transformam sua condição de espaço ou de lugar e passam a ser também um corpo que necessita habitar não mais o espaço representado mas o espaço do mundo.
Assim, estratos significam aguçar uma ideia de terreno que é formado por diversos sedimentos quando penso numa ideia de espaço, mas também corpo, quando formado pela estratificação da pele por exemplo, com a existência de uma epiderme, derme, hipoderme e também os outros tantos estratos que cada uma dessas camadas pode possuir até se atingir a dita carne da pintura.
O trabalho com a pintura sempre esteve em meu processo de trabalho, e entre tantas experimentações a gravura se fez presente. Quando comecei a trabalhar a gravura através da técnica da serigrafia, tinha como objetivo desenvolver um trabalho que fosse calculado, milimetrado e muito preciso. A impressão tinha que ser perfeita, estar exatamente dentro dos encaixes, com limpeza, leveza e objetividade. Uma busca um tanto diferente de meu processo em pintura, que sempre foi mais intuitivo e livre para se resolver entre experimentações e contaminações de um fazer um pouco mais caótico.
Apesar de nunca tratar as matrizes enquanto um veículo que me levavam a criação de múltiplos, pois sempre criei imagens que de certa forma eram impressas uma única vez, me motivei num certo rigor típico da gravura. E este processo tinha muita proximidade com a pintura, tanto, que às vezes eram lidos mais como pintura do que como gravura. Entre idas e vindas, retornei a pintura a óleo, buscando compreender esses estratos ou camadas. Ampliei as escalas das telas e comecei a tentar criar mais complexidade entre as camadas. Pois a função de cada uma delas na pintura era velar ou esconder a anterior, e revelar apenas em uma parte ou uma pequena amostra do que tinha acontecido antes. Busquei por criar acontecimentos entre as camadas, com a inclusão de pequenas imagens aleatórias, gestos marcados com pinceladas, entre outras ações. As matrizes de gravura estavam sempre por perto, eram muitas, e surgiram enquanto uma possibilidade de problematizar esta pintura enquanto pele, enquanto carne. Ao mesmo tempo me trouxeram uma série de novos problemas, como a ligação entre o linear e o pictórico, o gestual e o mecânico, o orgânico e o artificial, a abstração e a paisagem, etc… me aproximando de um problema entre elementos opostos e díspares e processos híbridos de criação da imagem. Não mais como gravura as matrizes era aplicadas enquanto ferramentas pictóricas, considerando erros, borrões, respingos, acertos e desacertos, próprios da pintura e distantes da gravura por assim dizer.
Hoje me interessa pensar a pintura, considerando seu possível estado de ser espaço e corpo ao mesmo tempo, como uma imagem que demonstra seu estado de crise entre tantas imagens digitais que contaminam nosso dia a dia, situá-la num lugar de dúvida e de incerteza.
S.L. Bom ler suas palavras… em especial porque elas não tem objetivo de explicar trabalhos, mas funcionam aqui em uma relação de complementaridade com a imagem, a história da arte, as teorias da arte, as reflexões, as críticas de arte… a palavra como um elemento que articula a formação. A pesquisa em poéticas como prova de que a dicotomia entre teoria e prática, imagens e palavras não se sustenta. Como é ser um artista, pesquisador e professor? Como o doutorado em poéticas visuais está acrescentando e articulando mais camadas em sua produção?
A.R. Pois, de fato, quando escrevo sobre o trabalho, nunca o é numa tentativa de explicar algo. A escrita é uma possibilidade de corporificar elementos conceituais que impulsionam a produção através de uma outra linguagem. São partes do trabalho que aprofundam sua posição reflexiva. Pois a arte surge de indagações, interconexões e de dúvidas. E neste caso, quando se intenciona criar algo, o artista se vê imerso num mar de múltiplas possibilidades, pode flutuar, nadar ou se afogar. A pesquisaem arte é se colocar no meio deste oceano, sem bote salva-vidas e sem bússola. A escrita como ilustração do trabalho não é de interesse do artista. Ela tem de ser parte do trabalho, um desdobramento da obra. Entretanto, escrever faz o artista tensionar pensamentos e caminhos seguidos em obra de forma mais racional, e de fato, conectar o mundo que o circunda com o que faz e pensa. Muitas soluções necessárias para a resolução do trabalho são encontradas no exercício da escrita e vice versa. O artista sempre produz um texto em sua mente, antes, durante e após o processo de criação. Em muitos casos, este texto permanece no plano das ideias, num lugar abstrato. Em outros, se materializa mesmo em textos livres, ou acadêmicos, ou em diários, ou em gravações de voz, ou em conversas, etc… A pesquisa em poéticas visuais tem seu lugar na universidade. Onde o texto do artista é visto como parte da obra. E este texto conecta o trabalho com as teorias e conceitos que o movem a produzir. É compreendido como um dos elementos que ascendem a investigação, e conectam todas as relações conceituais do mundo e da vida com o fazer da arte. O texto nasce do interior da produção e caminha junto com ela. Não está antes nem depois, mas durante.
Acredito que a dicotomia (no sentido de ser uma falácia) entre palavras e imagens se sustenta quando a escrita surge no sentido de explicar ou de ilustrar algo, pois nesta via diminui o processo. O artista não escreve, ou não deveria escrever, como o historiador, ou como o crítico por exemplo. Para fazer sentido e romper esta dicotomia que há muitos anos se debate, o artista deve sempre considerar que enquanto escreve, está a fazer um desdobramento de seu processo criativo, está escrevendo sobre algo que está em processo, que não existe ainda, que está criando. Pois, está a escrever sem saber como tudo vai terminar. O historiador ou o crítico, por outro lado, (salvo engano), escrevem sobre algo definido, pronto e muitas vezes já validado pelos sistemas. Numa tentativa de aproximar o leitor da obra, talvez até de esmiuçar elementos e explicar contextos. O artista com seu texto não tenta se aproximar de um público, não esmiúça detalhes invisíveis nem explica qualquer coisa. O texto para o artista é parte da obra. Mas ainda assim, a obra se sustenta sem que esse texto apareça. Ele aparece na ação, na proposição, na imagem, na forma, etc…
Desenvolver uma investigação em arte na universidade é muito enriquecedor. Neste lugar que durante tanto tempo se sustentou a posição de que era impossível ao artista pensar sua própria obra, pois não haveria distanciamento, não haveriam critérios de validação de uma auto-pesquisa, entre tantas outras questões que, ainda bem, caíram por terra. Pois já há a muitos anos, no Brasil e no mundo, diversos artistas que desenvolveram esse trabalho com maestria,ancorados por redes de reflexão sobre o tema, que ajudaram a romper com sistemas metodológicos definidos, abrindo espaço para que proposições artísticas sejam também investigações acadêmicas. Hoje, cursando o doutoramento em Artes Plásticas na Universidade do Porto, (mas também na graduação e no mestrado) percebi o quanto este exercício de investigação da própria obra é impulsionador do processo criativo. E quanto o trabalho se desenvolve e se nutre de inúmeras relações que se seguem. É criar e organizar o caminho, é ter liberdade de recriar as próprias ideias, é finalizar e voltar ao começo, é navegar sem saber onde se vai chegar , pois o que importa não é saber onde nem quando, mas sim, que não se desistiu ainda de tentar.
S.L. Bacana, parece estar pronto…
A.R. Lembra da frase que te enviei na primeira mensagem?
“já cheguei no fim recomecei e aqui estou eu…”
Então, acho que este será o título da exposição. Pois traz algumas reflexões que me acompanham há algum tempo.
Considero esta frase, porque, ela remete diretamente aos caminhos percorridos durante a pesquisa em arte, em que não se vislumbra um fim, pois o que se percebe, é talvez, um estado cíclico de sempre estar recomeçando. Acho que existe muita relação com o momento que estou a viver agora, pensar a pintura num estado totalmente diferente, (quando analiso meu processo) mas que está totalmente ligada com as gravuras por exemplo, considerando que são bem anteriores.
Quando achei que as gravuras haviam chegado ao fim, e tinha então me voltado a um novo começo, esse processo retorna. E percebo que meu trajeto tem muito disso mesmo, ir e vir, partir e voltar, virar do avesso, recuperar memórias sem um projeto definido… o fim é o começo, quase como num propósito em que sentir é tudo ou nada.
O que acha?